domingo, 17 de maio de 2020

GALERIA: MANABU MABE


O CARÁTER VISUAL DA POESIA JAPONESA


O caminho da caligrafia, ou shodô (書道, “o caminho da escrita”), surgiu na China, durante a dinastia Han (202 a.C. a 220 d.C.), e sempre esteve associado à poesia e à pintura. “É a caligrafia que dá corpo ao poema”, escreve Leonardo Fróes, “tendo ela em si, já na feição que os traços assumem, a capacidade de fixar estados de espírito” (in CAPPARELLI, Sérgio, e YUQI, Sun, 2012: 23). “Na mão do poeta”, prossegue o autor, “enquanto ele raciocina em palavras que têm de adaptar-se a uma forma, o pincel vai circular entre relaxamento e tensão, delicadeza e vigor, para constituir seu dizer.” Deste modo, “poesia, caligrafia e pintura são a rigor faces da mesma arte, não estando as três compartimentadas, e às vezes um mesmo artista, caso de Wang Wei, se destaca como mestre em todas[1]” (idem). A espontaneidade, a naturalidade, típicas das artes tradicionais inspiradas pelo taoísmo e pelo zen-budismo, estão presentes também na caligrafia. Conforme Viviane Alleton, “na China, o ato de escrever, longe de ser uma ruptura do ‘estado de natureza’, está ligado ao sentimento da natureza. Para muitos chineses, não há bela paisagem sem uma inscrição na pedra, poema, dístico ou simples caractere” (idem, 94). No tratado clássico chinês Meng Tian bijing, é dito que “deve-se conduzir o pincel até o fim, de uma maneira natural, como o peixe que nada com facilidade na água. Escreve-se aqui com suavidade, ali com força (...), mas sempre com a naturalidade das nuvens, espessas ou leves, que escalam o topo de uma montanha” (idem). Já no livro Gu jin shu ren you lue ping, afirma-se que “os caracteres escritos por Tchong You assemelham-se à fênix que paira no ar ou às gaivotas que sobrevoam a superfície do mar” (idem). Os caracteres caligrafados por Wang Xizhi são comparados, nessa mesma obra, à “vivacidade de dragões impetuosos que saltam em direção ao céu ou de tigres que percorrem as montanhas” (idem). Todas estas definições, embora metafóricas, indicam a ação espontânea de uma arte “que explora a beleza e a simplicidade espontâneas da linha”, onde “cada pincelada é desenvolvida pelo movimento de decisão. As pinceladas não são passíveis de correção” (in SAITO, 2004: 29), assim como acontece no haicai (o que nos faz recordar um adágio zen-budista citado pelo poeta norte-americano Allen Ginsberg: “primeira ideia, melhor ideia”).  Segundo Gombrich, os artistas chineses buscavam “adquirir uma tal facilidade no manejo do pincel e tinta que pudessem registrar a imagem enquanto sua inspiração ainda estava fresca, à maneira de um poeta escrevendo seus versos” (idem, 39).
       O Japão importou da China a arte da caligrafia e o alfabeto de ideogramas em meados do século III d. C. e esta aquisição teve reflexos profundos na concepção e estrutura visual de sua tradição poética, apesar das diferenças entre os dois idiomas (conforme Donald Keene: “o gênio da língua japonesa era bem diferente do chinês. Não só sujeito, predicado e objeto eram, até um grau, indistinguíveis, e a pontuação inexistente, mas até o perfil das palavras era borrado”. In LEMINSKI, 1983: 33). A caligrafia japonesa, exercida inicialmente pelos sacerdotes budistas, desenvolveu-se no final do Período Asuka (538 a 710 d. C.) e a mais antiga peça escrita em papel é o Hokke Gisho (法華義疏), conjunto de quatro rolos com comentários sobre o Sutra Hokke, datado de 615 d.C.  No final do Período Heian (794-1185), conforme Cecília Noriko Ito Saito, “surgiram manuscritos executados em folhas de papel, cortados em forma de leques, que sintetizavam a caligrafia e a pintura” (SAITO, 2004: 15). Ao contrário da arte visual religiosa tradicional, nesses manuscritos “os motivos eram determinados pela iconografia” (idem), libertando-se dos “laços ritualísticos” (idem). Nesse período, os calígrafos já não eram monges-pintores, mas artistas leigos que preferiam retratar cenas mundanas. Desenvolveram-se três estilos básicos de caligrafia: kaisho ou shinsho, “um estilo que apresenta quebras e movimentos duros” (idem, 19), gyosho, “estilo mediano, de letra cursiva, que não se apresenta tão duro quanto o kaisho” (idem) e sosho, “estilo fluido composto por cursos rápidos”, que por sua beleza se tornou “o estilo mais popular entre os mestres da caligrafia” (idem). Com o passar do tempo, a arte do shodô passou a fazer parte da vida cotidiana dos japoneses, sendo utilizada na decoração da sala de chá ou no tokonoma (床の間), nicho especial de um aposento decorado com uma caligrafia ou pintura e arranjos florais. Os instrumentos utilizados tradicionalmente pelos mestres japoneses de caligrafia são o pincel feito com cerdas de pêlo de coelho[2] (, fudê), a tinta feita à base de carvão em óleo vegetal (, sumi, usado na pintura sumiê) e ainda o papel feito com fibra de bambu, palha ou bagaço de bananeira (和紙, washi). Os calígrafos utilizavam ainda uma esteira macia e absorvente, colocada abaixo do papel (下敷き, shitajiki), pequenos pesos em forma de barras, para segurar o papel (文鎮  , bunchin) e o suporte para a tinta (, suzuri). A realização da caligrafia é bastante ritualizada, desde a preparação da tinta até a execução do pincel e envolve gestualidade e improvisação. “Existe algo de instância não determinada, não pronta e que se resolve no instante de sua execução”, escreve Cecília Noriko Ito Saito (idem, 102). “Esta é a característica-chave do shodô. Quando um indivíduo pratica o shodô, realiza algo nesse processo, através da ação do seu corpo[3]” (idem). A importância da gestualidade na escrita e na caligrafia permite o paralelo, estabelecido por Saito, entre o shodô “e alguns artistas da vanguarda, mais exatamente Jackson Pollock” (idem, 39). Conforme a estudiosa brasileira, em seu livro O shodô, o corpo e os novos processos de significação:
Os novos artistas-investigadores consideravam a pintura, o esboço e o quadro como uma ação, e, como tal, a primeira ação deveria ser a melhor. Nada poderia obstruir a ação de pintar. O que importava era a revelação contida no ato. Traçando um paralelo de similaridade com o artista que trabalha o shodô, a perfeição da pincelada que não permite correção indica a valoração da primeira ação (idem).

Na França, o estilo do expressionismo abstrato ou Action painting, caracterizado por pinceladas espontâneas, borrões e respingos de tinta, compondo superfícies ásperas e assimétricas na tela, foi chamado de tachismo, palavra derivada do termo francês tache, que significa “mancha”. Nos Estados Unidos, Jackson Pollock (1912-1956) foi o primeiro artista plástico que se interessou por essa técnica de aplicação de tinta, “e, como na caligrafia chinesa, suas pinturas deveriam ser feitas de uma forma rápida e não-premeditada. Na maioria das vezes, o pintor colocava suas telas no chão, arremessando as tintas sobre ela para descobrir novas configurações” (idem, 40). Conforme Saito, “Pollock desenvolve qualidades rítmicas neste método de respingamento ao acaso. Nesse processo, as mãos do artista não são determinantes, sendo a variedade das formas das linhas, elas próprias, dotadas de uma linguagem individual” (idem, 40). O calígrafo japonês, por seu turno, “interessa-se pelo ritmo da linha e é através dele que a energia é controlada. Na medida em que o trabalho é executado, o ritmo penetra inteiramente nos movimentos do corpo, braço e pincel, tornando-se uma base inconsciente que o capacita a soltar-se livremente” (idem). Não se trata, diz a estudiosa brasileira, de uma “repetição mecânica de pinceladas, mas sim uma peça viva que responde aos impulsos criativos do momento. A linha apresenta fluidez e oferece uma grande diversidade de expressão”, comentário que podemos estender tanto a Pollock quanto a Ono no Michikaze (894-966), um dos maiores calígrafos japoneses, que viveu durante o Período Heian. As similaridades entre a caligrafia artística japonesa e o expressionismo abstrato podem ser ampliadas até as experiências poéticas de autores portugueses que investiram na composição visual, como Ana Hatherly e E. M. de Melo e Castro, expoentes do movimento da Poesia Experimental.
     Estudamos, no presente capítulo, os gêneros poéticos mais praticados na literatura japonesa entre os séculos VIII e XIX, com ênfase particular em seus aspectos estruturais, referências culturais e a íntima relação entre poesia, caligrafia e pintura, que fascinarão os poetas portugueses na segunda metade do século XX. No capítulo seguinte, iremos rastrear o diálogo cultural entre os autores portugueses e a cultura japonesa desde os relatos de viajantes do século XVI até os livros memoráveis de Wenceslau de Moraes, primeiro tradutor do haicai para a língua portuguesa.



[1] Conforme Cecília Noriko Ito Saito, “à luz da Semiótica da Cultura, a polêmica instaurada pela história, que via o shodô ora como escrita, ora como pintura, praticamente desaparece, uma vez que tanto pintura como caligrafia seriam textos da cultura. (...) Metaforicamente, assemelha-se” (o texto) “a uma rede que transmite a imagem de algo que cresce, expande e se desenvolve, onde a inscrição do autor é lúdica. O texto é plural, não tem centro, nem fechamento e não depende de uma interpretação (...) O semioticista Cesare Segre (1989: 152) diz que a palavra textus firmou-se na língua latina como particípio passado de texere, metáfora do discurso como um tecido que se atualizou não permanecendo apenas como vocabulário.“ (SAITO, 2004: 23).

[2] “Os tipos de pêlos de animais, utilizados nos pinceis, trazem resultados diversos quanto à elasticidade. Alguns absorvem mais tinta, alguns liberam mais, e cabe ao calígrafo decidir qual é aquele apropriado para um trabalho específico. Ao contrário de se usar uma pena, o pincel dos calígrafos reserva mais controle na espessura e no tom dos caracteres. Os artesãos hábeis fabricam seus próprios pinceis, experimentando-os conforme seus efeitos.” (idem, 102)

[3] Com efeito, segundo Shutaro Mukai, professor da Musashino Art University, os próprios ideogramas “são associados com o sentido do tato ou a sensação física” (in CAMPOS: 2000, 18) e evocam, para o japonês, “a memória dos movimentos musculares envolvidos no ato de escrever” (idem, 19).


sexta-feira, 26 de abril de 2019

BOJUTSU, A ARTE DO BASTÃO LONGO


















Na foto: sensei Ruben Espinoza

BOJUTSU: A ARTE DO BASTÃO LONGO


Claudio Daniel

O Bojutsu, ou arte do bastão longo, é uma prática marcial japonesa que utiliza o bastão longo, ou bô, que tem cerca de 1m80 (o bastão curto, ou jô, utilizado em outras técnicas, como o Jojutsu e o Jodô, tem cerca de 1m20). Os movimentos de bastão são rápidos, ágeis, amplos e vigorosos, ao mesmo tempo que têm grande beleza estética, como se fossem movimentos coreográficos. A arte de manejar o bô nasceu na ilha de Okinawa, com a adaptação de uma ferramenta de trabalho, usada para o transporte de baldes de água, em um instrumento para a proteção dos camponeses dos incessantes ataques dos piratas (o uso de espadas ou outras armas era proibido pelas autoridades da ilha). 

A arte atingiu um grau elevado de refinamento nos períodos Azuchi-Momoyama (1573-1603) e Edo (1603-1868). No século XX, Gichin Funakoshi, o criador do Karatê moderno, levou o Bojutsu para as grandes cidades japonesas e o estilo tradicional ensinado por ele, ou Ryukyu Bojutsu, chegou até o sensei Hiroyuki Aoki, que transformou o Bojutsu numa técnica mais fluída e flexível, como se fosse uma dança, mas sem perder a função marcial dos movimentos. 

O novo estilo da arte desenvolvido por Aoki incorporou práticas meditativas e um sentido filosófico, a partir dos estudos que ele realizou tanto das tradições orientais quanto do cristianismo e também de diferentes linguagens artísticas, como o jazz fusion, a dança ocidental moderna e a pintura expressionista abstrata de Jackson Pollock. A arte desenvolvida por Aoki Sensei chamou-se Shintaidô Bojuntsu e possui um caráter espiritual que a diferencia de outras modalidades, mais voltadas às competições, ao aspecto combativo ou ao mero domínio formal. 

O Shintaido, nas palavras de Aoki, é “uma forma de trabalho corporal que faz com que se torne possível perceber o seu verdadeiro eu, purificar a alma e elevar o espírito”, além de desenvolver a sensibilidade, ampliando a percepção que temos de nosso próprio corpo, dos sons, imagens, cheiros e dos movimentos que acontecem à nossa volta, tornando-nos mais conscientes e atentos. 

Aoki Sensei realizou diversas mudanças em seu estilo de Bojutsu após viajar pela América Central, Andes e Brasil, onde conheceu, inclusive, comunidades indígenas que também usam bastões em seus rituais. Fascinado pela beleza natural brasileira e latino-americana, diz Aoki, “decidi tentar criar um sistema de luta que tivesse algo em comum com a grandeza dessas paisagens e, ao mesmo tempo, estivesse imbuído do aspecto profundamente natural da nossa humanidade. Com isso em mente, eu revisei completamente o Bojutsu que eu havia desenvolvido até aquele ponto, e consegui torná-lo um sistema mais rico”. 

Em 1978, após retornar ao Japão, o mestre passou por uma nova e extraordinária experiência: todas as noites, sonhava que um homem armado com um bastão o atacava, e ele via um outro eu sair de seu corpo e lutar com o atacante, usando técnicas que ele nunca tinha visto. Depois de algum tempo, passou a anotar todas as técnicas que viu em sonhos, e assim registrou 50 delas, chamadas nage wazas, que incorporou ao seu estilo, tornando-o ainda mais completo. 

A arte desenvolvida por Aoki chegou ao Brasil graças ao seu discípulo Yamato Hiramatsu, que também ensinou aqui o Kenjutsu, ou arte da espada samurai, a caligrafia tradicional shodô, o Karatê e outras artes japonesas. Yamato Sensei modificou o estilo criado por Aoki, preservando suas técnicas fundamentais, porém incorporando descobertas de suas próprias pesquisas pessoais e aumentando ainda mais o seu caráter fluido, originando o atual Shindoryu Bojutsu. 

Atualmente, essa arte é ensinado em São Paulo pelo sensei Ruben Espinoza, da Associação Hiramatsu-ryu, discípulo dos senseis Aoki e Yamato. As aulas dessa arte acontecem todas as sextas-feiras pela manhã, numa quadra localizada perto da estação de metrô Conceição (a partir de junho, também aos sábados, no Parque do Ibirapuera) e incluem exercícios físicos preparatórios, chamados de kihons, técnicas de ataque e defesa com o bastão realizadas individualmente, conhecidas como katás, e ainda exercícios feitos em dupla, ou kumibô, em que um praticante realiza o ataque com o bastão e o outro executa a defesa. 

Todas as técnicas são executadas, a princípio, com velocidade moderada, até que cada aluno ganhe autoconfiança e domínio técnico; em seguida, o ritmo e o vigor físico das técnicas vai aumentando, já que se trata de uma arte marcial combativa. 

Conforme diz  o sensei Ruben Espinoza, o Shindoryu Bojutsu pode ser praticado por todas as pessoas interessadas, inclusive mulheres, idosos e crianças, pois, além de seu aspecto marcial, é também uma arte meditativa e terapêutica, que traz diversos benefícios para os sistemas respiratório, sanguíneo, muscular, nervoso, além de estimular a nossa sensibilidade e fortalecer a capacidade de atenção e concentração.   

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

OS CINCO ELEMENTOS NA CULTURA JAPONESA

Sensei Ruben Espionoza

Godai (os cinco grandes) são a representação do divino na Natureza, ele está em tudo e tudo está em nós.

Terra – Em japonês, Chi. Aos estudantes de língua japonesa, não confundir com tsuchi. São kanjis diferentes. Representa a energia sólida, a matéria.

Fogo – Em japonês, Hi. Representa a energia em movimento. Está associado aos impulsos e desejos.

Vento – Em japonês, Kaze. Representa a energia em expansão, o que está em crescimento. Associa-se à mente e ao conhecimento, à capacidade de expansão mental.

Água – Em japonês, Mizu. Representa a energia que flui, o que não tem forma. Está associada à capacidade de se adaptar às mudanças.

 Vazio – Em japonês, Sora, também significa “Céu”. Representa tudo o que envolve a experiência. Está associado ao espírito, ao impulso inicial, à energia necessária à criação de todas as outras coisas relacionadas aos outros elementos.

 O Godai é representado nas pagodas (em sânscrito, stupa), sendo a mais conhecida o gorintou, ou a pagoda de cinco anéis. O gorintou é uma estrutura de pedra que contém cinco anéis de formas diferentes, cada um simbolizando um dos cinco elementos

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

KENJUTSU, A ARTE DA ESPADA SAMURAI



O Kenjutsu, a arte da espada samurai, nasceu no período medieval japonês, tendo se desenvolvido a partir do Período Muromachi (séculos XV e XVI), quando surgiram os principais estilos dessa arte, voltada ao emprego nos campos de batalha. A espada utilizada pelos guerreiros japoneses, conhecidos como samurais, era a kataná, lâmina de aço curva surgida no Período Heian (794-1185), levada na cintura ao lado de uma espada menor, a kodachi. O combate com a espada era usado sobretudo nas lutas contra adversários localizados a curta distância, apoiando a ação da cavalaria, dos arqueiros e dos soldados de infantaria armados com lanças. As táticas e estratégias militares, as armas e equipamentos de proteção desenvolvidos nos feudos japoneses eram essenciais numa época em que o Japão esteve envolvido em conflitos entre os senhores da guerra locais e contra países vizinhos. Apesar do caráter guerreiro da arte da espada, ela estava relacionada com um rigoroso código de ética, chamado bushidô (“o caminho do guerreiro”), influenciado por ideias filosóficas de Confúcio e do taoísmo chinês. O samurai não era um simples soldado, mas um guerreiro refinado, que dedicava sua vida à defesa de seu mestre e dos valores e princípios de uma sociedade aristocrática em que a etiqueta, a beleza e a busca da perfeição estavam presentes em todos os campos da vida social. Com a unificação do país pelo xogum Ieyasu Tokugawa, no século XVII, o Japão conheceu um período prolongado de paz e a classe dos guerreiros ingressou na administração pública. As artes de combate foram então reformuladas, tendo como objetivos, agora, não apenas matar adversários na guerra, mas promover a paz interior, a realização espiritual, a preservação da saúde e da energia interna e estimular virtudes como a honestidade, a justiça, a lealdade, o respeito, a honra, a coragem e a compaixão. O bujutsu, ou artes da guerra, transformou-se em budô, artes da paz, da harmonia, do equilíbrio e da espiritualidade. Esse foi o espírito que animou as diversas artes tradicionais praticadas pela aristocracia japonesa, como a caligrafia, poesia, pintura, cerimônia do chá ou teatro nô, influenciadas pela filosofia zen-budista, seguida pelos samurais. A combinação da prática marcial com o da literatura e outras artes ficou conhecido como “o caminho combinado da caneta e da espada”. O Kenjutsu tornou-se uma arte espiritual e meditativa, porém, sem perder o seu caráter guerreiro e a sua eficiência. O ensino da arte passou a ser realizado em dojos, sob os cuidados de um mestre, ou sensei, por meio do ensino de diversas técnicas, ou katás, que são movimentos de ataque e defesa com a espada, realizados em duplas – um aluno (tori) realiza o ataque com a espada, e outro aluno (ukê) realiza a defesa, em diferentes sequências de movimentos. Em geral, usa-se a espada de madeira, ou bokutô, ao contrário de outras artes da esgrima japonesa, que utilizam a espada de bambu, ou shinái, ideal para competições esportivas, como acontece no Kendô, ou a espada de aço sem corte, a Iaitô, utilizada em artes de saque e guarda da espada, como o Iaijutsu e o Iaidô. Todas essas artes provêm do amplo repertório das formas de utilização da espada pelos guerreiros samurais, mas foram reformuladas para a prática nos tempos modernos. Além do treino dos katás, que são diferentes nas várias escolas, há exercícios preparatórios, conhecidos como kihons, que têm como finalidade exercitar a flexibilidade, o relaxamento, a leveza, a agilidade, e sobretudo o trabalho com a energia interna, ou ki, com os músculos brancos, pouco estimulados em outras formas de prática corporal, e sobretudo o treino com a cintura, ou koshi, base de todas as técnicas de Kenjutsu e de outras formas de artes marciais japonesas, como o Aikidô. Há centenas de estilos dessa arte, sendo que muitos deles se perderam, após a II Guerra Mundial. No Brasil, a primeira arte marcial com a espada praticada no país foi o Kendô, um esporte de competição que valoriza a velocidade, a força e a marcação de pontos, que acontece quando um espadachim acerta a cabeça, o antebraço ou outro ponto do corpo do adversário. Essa arte, praticada com equipamentos de proteção corporal, inspirados na armadura samurai, segue regras específicas voltadas para a participação em campeonatos e demonstrações esportivas. O Kenjutsu, que chegou mais tarde ao país, não é um esporte: mantém o caráter marcial, por isso mesmo não participa de campeonatos, nem possui um sistema de graduação desde a faixa branca até a faixa preta, como acontece no Judô ou no Karatê. Seus praticantes utilizam o dogui (quimono) e o obi (faixa) na cor branca, que no Japão é a cor da morte – neste caso, não a morte física, mas a morte de um antigo eu para o nascimento de um outro eu, mais sensível, receptivo, forte e saudável.  Os objetivos do Kenjutsu na época atual, segundo o sensei Ruben Espinoza, que ensina o estilo Hiramatsu-ryu em São Paulo, são os seguintes: estimular a capacidade mental de concentração, atenção, percepção, tomada de decisões, respeito e disciplina dos praticantes, através do treino dos katás; aumentar a capacidade física de coordenação motora, reflexos, velocidade, força, precisão e resistência; promover a saúde física, mental e espiritual; e resgatar a arte da espada samurai antiga, trazendo inovações nos treinos com influência das artes corporais modernas. 

P.S.: O Kenjutsu Hiramatsu-ryu é uma arte marcial espiritual de meditação em movimento que ajuda a desenvolver o espírito do guerreiro interior através da arte, sem perder a eficiência técnica da arte marcial samurai. O estilo foi trazido ao Brasil por Yamato Hiramatsu, que estudou diversos estilos antigos, como o Shinkage-ryu, Tamiya-ryu e Shinkenjutsu.

domingo, 19 de agosto de 2018

O TAI CHI COMO ARTE MARCIAL









O Tai Chi Chuan é mais conhecido por sua sequência de movimentos circulares, lentos e suaves, que sugerem uma forma de dança, meditação, ginástica ou prática energética e terapêutica, mas ele é também uma arte de combate, o que está indicado em seu próprio nome – a palavra chuan, em chinês, significa punho, luta ou técnica marcial. Como outras artes da Escola Interna (neijia), porém, o Tai Chi não faz uso da força bruta, baseada nos ossos e músculos vermelhos, mas da energia interior, chamada chi (ou ki, em japonês) e utiliza diversas técnicas que absorvem, transformam e devolvem a força do adversário contra ele mesmo (assim como acontece, em formas diferentes, no Aikidô), fazendo uso da flexibilidade, da respiração e das ações circulares ou espiraladas, em vez de gestos pesados, rígidos e duros. Os movimentos do Tai Chi são lentos, no aprendizado, mas também podem ser executados com muita rapidez, quando empregados para o ataque ou a defesa. O treinamento marcial do Tai Chi Chuan acontece, sobretudo, na prática de duas séries de exercícios, realizados com parceiro, que se chamam Tui Shou (“pressão das mãos”) e San Shou (“dispersão das mãos”). Conforme escreve Catherine Despeux no livro Tai Chi Chuan, Arte Marcial, Técnica de Longa Vida: “Estes exercícios a dois destinam-se, particularmente, à aplicação dos movimentos de encadeamento no combate. Entretanto, ainda que não trabalhemos o aspecto marcial do Tai Chi Chuan, tais exercícios oferecem múltiplas vantagens. Citemos algumas: permitem-nos adquirir melhor coordenação motora, aprender a perceber melhor o contendor e o modo com que nos colocamos em relação ao mundo exterior e estimulam o interesse das pessoas que encontram dificuldades no aprendizado de movimentos lentos, notadamente as crianças. (...) Todos os exercícios de pressão das mãos têm por base os quatro movimentos principais do Tai Chi Chuan, que correspondem aos quatro pontos cardeais e aos quatro trigramas Quian, Kun, Kan e Li. São eles: aparar o golpe (peng), puxar para trás (lu), empurrar para a frente (ji) e repelir (an). (...) A escola Yang instaurou um encadeamento a dois (San Shou) no qual um dos contendores faz um movimento do encadeamento do Tai Chi Chuan, ao passo que o outro responde por outro movimento do Tai Chi Chuan, que será a defesa, e assim por diante. Desse modo, se A executar o movimento ‘dar um soco’, B se defenderá efetuando o movimento ‘erguer as mãos’. (...) Nesses movimentos, o ataque se faz com a palma, o punho, o pulso, o cotovelo, o ombro, os joelhos e os pés. A resposta a cada golpe do adversário efetua-se no momento de recepção do golpe, no instante em que o adversário emite sua energia.”