domingo, 17 de maio de 2020

GALERIA: MANABU MABE


O CARÁTER VISUAL DA POESIA JAPONESA


O caminho da caligrafia, ou shodô (書道, “o caminho da escrita”), surgiu na China, durante a dinastia Han (202 a.C. a 220 d.C.), e sempre esteve associado à poesia e à pintura. “É a caligrafia que dá corpo ao poema”, escreve Leonardo Fróes, “tendo ela em si, já na feição que os traços assumem, a capacidade de fixar estados de espírito” (in CAPPARELLI, Sérgio, e YUQI, Sun, 2012: 23). “Na mão do poeta”, prossegue o autor, “enquanto ele raciocina em palavras que têm de adaptar-se a uma forma, o pincel vai circular entre relaxamento e tensão, delicadeza e vigor, para constituir seu dizer.” Deste modo, “poesia, caligrafia e pintura são a rigor faces da mesma arte, não estando as três compartimentadas, e às vezes um mesmo artista, caso de Wang Wei, se destaca como mestre em todas[1]” (idem). A espontaneidade, a naturalidade, típicas das artes tradicionais inspiradas pelo taoísmo e pelo zen-budismo, estão presentes também na caligrafia. Conforme Viviane Alleton, “na China, o ato de escrever, longe de ser uma ruptura do ‘estado de natureza’, está ligado ao sentimento da natureza. Para muitos chineses, não há bela paisagem sem uma inscrição na pedra, poema, dístico ou simples caractere” (idem, 94). No tratado clássico chinês Meng Tian bijing, é dito que “deve-se conduzir o pincel até o fim, de uma maneira natural, como o peixe que nada com facilidade na água. Escreve-se aqui com suavidade, ali com força (...), mas sempre com a naturalidade das nuvens, espessas ou leves, que escalam o topo de uma montanha” (idem). Já no livro Gu jin shu ren you lue ping, afirma-se que “os caracteres escritos por Tchong You assemelham-se à fênix que paira no ar ou às gaivotas que sobrevoam a superfície do mar” (idem). Os caracteres caligrafados por Wang Xizhi são comparados, nessa mesma obra, à “vivacidade de dragões impetuosos que saltam em direção ao céu ou de tigres que percorrem as montanhas” (idem). Todas estas definições, embora metafóricas, indicam a ação espontânea de uma arte “que explora a beleza e a simplicidade espontâneas da linha”, onde “cada pincelada é desenvolvida pelo movimento de decisão. As pinceladas não são passíveis de correção” (in SAITO, 2004: 29), assim como acontece no haicai (o que nos faz recordar um adágio zen-budista citado pelo poeta norte-americano Allen Ginsberg: “primeira ideia, melhor ideia”).  Segundo Gombrich, os artistas chineses buscavam “adquirir uma tal facilidade no manejo do pincel e tinta que pudessem registrar a imagem enquanto sua inspiração ainda estava fresca, à maneira de um poeta escrevendo seus versos” (idem, 39).
       O Japão importou da China a arte da caligrafia e o alfabeto de ideogramas em meados do século III d. C. e esta aquisição teve reflexos profundos na concepção e estrutura visual de sua tradição poética, apesar das diferenças entre os dois idiomas (conforme Donald Keene: “o gênio da língua japonesa era bem diferente do chinês. Não só sujeito, predicado e objeto eram, até um grau, indistinguíveis, e a pontuação inexistente, mas até o perfil das palavras era borrado”. In LEMINSKI, 1983: 33). A caligrafia japonesa, exercida inicialmente pelos sacerdotes budistas, desenvolveu-se no final do Período Asuka (538 a 710 d. C.) e a mais antiga peça escrita em papel é o Hokke Gisho (法華義疏), conjunto de quatro rolos com comentários sobre o Sutra Hokke, datado de 615 d.C.  No final do Período Heian (794-1185), conforme Cecília Noriko Ito Saito, “surgiram manuscritos executados em folhas de papel, cortados em forma de leques, que sintetizavam a caligrafia e a pintura” (SAITO, 2004: 15). Ao contrário da arte visual religiosa tradicional, nesses manuscritos “os motivos eram determinados pela iconografia” (idem), libertando-se dos “laços ritualísticos” (idem). Nesse período, os calígrafos já não eram monges-pintores, mas artistas leigos que preferiam retratar cenas mundanas. Desenvolveram-se três estilos básicos de caligrafia: kaisho ou shinsho, “um estilo que apresenta quebras e movimentos duros” (idem, 19), gyosho, “estilo mediano, de letra cursiva, que não se apresenta tão duro quanto o kaisho” (idem) e sosho, “estilo fluido composto por cursos rápidos”, que por sua beleza se tornou “o estilo mais popular entre os mestres da caligrafia” (idem). Com o passar do tempo, a arte do shodô passou a fazer parte da vida cotidiana dos japoneses, sendo utilizada na decoração da sala de chá ou no tokonoma (床の間), nicho especial de um aposento decorado com uma caligrafia ou pintura e arranjos florais. Os instrumentos utilizados tradicionalmente pelos mestres japoneses de caligrafia são o pincel feito com cerdas de pêlo de coelho[2] (, fudê), a tinta feita à base de carvão em óleo vegetal (, sumi, usado na pintura sumiê) e ainda o papel feito com fibra de bambu, palha ou bagaço de bananeira (和紙, washi). Os calígrafos utilizavam ainda uma esteira macia e absorvente, colocada abaixo do papel (下敷き, shitajiki), pequenos pesos em forma de barras, para segurar o papel (文鎮  , bunchin) e o suporte para a tinta (, suzuri). A realização da caligrafia é bastante ritualizada, desde a preparação da tinta até a execução do pincel e envolve gestualidade e improvisação. “Existe algo de instância não determinada, não pronta e que se resolve no instante de sua execução”, escreve Cecília Noriko Ito Saito (idem, 102). “Esta é a característica-chave do shodô. Quando um indivíduo pratica o shodô, realiza algo nesse processo, através da ação do seu corpo[3]” (idem). A importância da gestualidade na escrita e na caligrafia permite o paralelo, estabelecido por Saito, entre o shodô “e alguns artistas da vanguarda, mais exatamente Jackson Pollock” (idem, 39). Conforme a estudiosa brasileira, em seu livro O shodô, o corpo e os novos processos de significação:
Os novos artistas-investigadores consideravam a pintura, o esboço e o quadro como uma ação, e, como tal, a primeira ação deveria ser a melhor. Nada poderia obstruir a ação de pintar. O que importava era a revelação contida no ato. Traçando um paralelo de similaridade com o artista que trabalha o shodô, a perfeição da pincelada que não permite correção indica a valoração da primeira ação (idem).

Na França, o estilo do expressionismo abstrato ou Action painting, caracterizado por pinceladas espontâneas, borrões e respingos de tinta, compondo superfícies ásperas e assimétricas na tela, foi chamado de tachismo, palavra derivada do termo francês tache, que significa “mancha”. Nos Estados Unidos, Jackson Pollock (1912-1956) foi o primeiro artista plástico que se interessou por essa técnica de aplicação de tinta, “e, como na caligrafia chinesa, suas pinturas deveriam ser feitas de uma forma rápida e não-premeditada. Na maioria das vezes, o pintor colocava suas telas no chão, arremessando as tintas sobre ela para descobrir novas configurações” (idem, 40). Conforme Saito, “Pollock desenvolve qualidades rítmicas neste método de respingamento ao acaso. Nesse processo, as mãos do artista não são determinantes, sendo a variedade das formas das linhas, elas próprias, dotadas de uma linguagem individual” (idem, 40). O calígrafo japonês, por seu turno, “interessa-se pelo ritmo da linha e é através dele que a energia é controlada. Na medida em que o trabalho é executado, o ritmo penetra inteiramente nos movimentos do corpo, braço e pincel, tornando-se uma base inconsciente que o capacita a soltar-se livremente” (idem). Não se trata, diz a estudiosa brasileira, de uma “repetição mecânica de pinceladas, mas sim uma peça viva que responde aos impulsos criativos do momento. A linha apresenta fluidez e oferece uma grande diversidade de expressão”, comentário que podemos estender tanto a Pollock quanto a Ono no Michikaze (894-966), um dos maiores calígrafos japoneses, que viveu durante o Período Heian. As similaridades entre a caligrafia artística japonesa e o expressionismo abstrato podem ser ampliadas até as experiências poéticas de autores portugueses que investiram na composição visual, como Ana Hatherly e E. M. de Melo e Castro, expoentes do movimento da Poesia Experimental.
     Estudamos, no presente capítulo, os gêneros poéticos mais praticados na literatura japonesa entre os séculos VIII e XIX, com ênfase particular em seus aspectos estruturais, referências culturais e a íntima relação entre poesia, caligrafia e pintura, que fascinarão os poetas portugueses na segunda metade do século XX. No capítulo seguinte, iremos rastrear o diálogo cultural entre os autores portugueses e a cultura japonesa desde os relatos de viajantes do século XVI até os livros memoráveis de Wenceslau de Moraes, primeiro tradutor do haicai para a língua portuguesa.



[1] Conforme Cecília Noriko Ito Saito, “à luz da Semiótica da Cultura, a polêmica instaurada pela história, que via o shodô ora como escrita, ora como pintura, praticamente desaparece, uma vez que tanto pintura como caligrafia seriam textos da cultura. (...) Metaforicamente, assemelha-se” (o texto) “a uma rede que transmite a imagem de algo que cresce, expande e se desenvolve, onde a inscrição do autor é lúdica. O texto é plural, não tem centro, nem fechamento e não depende de uma interpretação (...) O semioticista Cesare Segre (1989: 152) diz que a palavra textus firmou-se na língua latina como particípio passado de texere, metáfora do discurso como um tecido que se atualizou não permanecendo apenas como vocabulário.“ (SAITO, 2004: 23).

[2] “Os tipos de pêlos de animais, utilizados nos pinceis, trazem resultados diversos quanto à elasticidade. Alguns absorvem mais tinta, alguns liberam mais, e cabe ao calígrafo decidir qual é aquele apropriado para um trabalho específico. Ao contrário de se usar uma pena, o pincel dos calígrafos reserva mais controle na espessura e no tom dos caracteres. Os artesãos hábeis fabricam seus próprios pinceis, experimentando-os conforme seus efeitos.” (idem, 102)

[3] Com efeito, segundo Shutaro Mukai, professor da Musashino Art University, os próprios ideogramas “são associados com o sentido do tato ou a sensação física” (in CAMPOS: 2000, 18) e evocam, para o japonês, “a memória dos movimentos musculares envolvidos no ato de escrever” (idem, 19).